terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Refletindo sobre “O LADO BOM DA VIDA”






Indicado ao Óscar 2013 em oito categorias, “O lado bom da vida” é um filme sem grandes fatos extraordinários, porém, com uma história muito bem narrada, e personagens instigantes e bem interpretados. Aborda de modo central os temas do divórcio, transtorno mental, perdas e diferentes tipos de lutos, culminando com a temática da reinvenção da vida.
O casal Pat e Dolores Solitano, são os pais de Pat Solitano Jr, ator que faz o papel principal, e que como seu pai, possivelmente sofre de Transtorno Bipolar (diz-se aqui “possivelmente”, pois o filme não aborda isso explicitamente). Pat Jr, após vivenciar uma experiência de traição da esposa Nikki,, tem um acesso de fúria e é internado em um hospital psiquiátrico. Após alguns meses Dolores, a mãe, consegue sua liberação do hospital, levando-o de volta para a casa sob custódia. Quando Pat volta, resolve ir novamente ao encontro da ex-mulher, negando para si mesmo a nova realidade instalada na relação após o episódio da traição, em tentativas desesperadas de se reaproximar da ex-mulher.



O filme caracteriza bem, como momentos de grande stress podem expor vulnerabilidades pessoais, exacerbando alguns comportamentos e impulsionando a outros, que em situações normais possivelmente não se manifestariam. Também caracteriza muito bem, o contexto de vida e impacto da perda de um relacionamento afetivo na vida das pessoas, não apenas na atuação de Pat, mas também na de Tiffany, uma moça de temperamento forte e comunicação direta, que ele conhece quando sai do hospital, e que tal como ele, está lidando com a experiência de perda e vivenciando um momento de luto.



A psicóloga Terezinha Féres-Carneiro ao estudar a separação conjugal, destaca que, assim como “o casamento implica na construção de uma nova identidade para os cônjuges … no processo de separação, a identidade conjugal, construída no casamento, vai aos poucos se desfazendo, levando os cônjuges a uma redefinição de suas identidades individuais”. E citando Caruso, essa mesma pesquisadora alerta: “A separação é uma das mais dolorosas experiências pelas quais pode passar um ser humano, é um processo complexo, vivido em diferentes etapas e em diferentes níveis, ou seja, nos pensamentos secretos de cada membro do casal, no diálogo entre eles e na explicitação para o contexto social que os circunda.”



Se Tiffany estava vivendo um luto por morte, Pat estava vivendo um luto pela perda da esposa e do casamento idealizado. Também neste sentido Féres Carneiro ilumina a compreensão do processo ao lembrar que “estudar a separação amorosa significa estudar a presença da morte na vida.” Ainda lembrando Caruso, esta psicóloga explicita que “na separação há uma sentença de morte recíproca: 'o outro morre em vida, mas morre dentro de mim... e eu também morro na consciência do outro.”


Nessa fase difícil, a promoção da saúde emocional é fundamental. Especialmente se considerarmos os dados de outro pesquisador na área da morte e luto, Colin Murray Parkes, que indica que o stress causado pelo luto pode, de alguma forma, predispor à maior vulnerabilidade à manifestações de doenças e maior risco de morte no período de enlutamento..

No filme, Pat e Tiffany encontram a benção de se conhecerem e iniciarem uma amizade marcada por profundo apoio mútuo (que posteriormente desembocará em um relacionamento amoroso de casal). A amizade como importante fator de saúde mental, já foi apontada por estudiosos tais como, Tom Rath em seu livro “O poder da amizade”, e Klaus Manhart em seu artigo “Nada como um bom amigo”. Consideramos que o filme destaca com beleza e concretude os benefícios dessa relação de amizade para ambos. Relação esta que aos poucos vai se transformando numa relação amorosa.
Neste sentido, lembramos o psicólogo Paolo Menghi, ao ensinar-nos que “uma relação de casal pode representar para os dois membros que a compõem, a forma de psicoterapia mais eficaz (…) uma oportunidade incrível de evolução individual.” Sendo que, “um dos objetivos fundamentais de uma relação de casal consiste em favorecer o processo evolutivo de seus participantes.”

Tanto o luto por morte do companheiro, ou pelas perdas advindas de uma experiência de divórcio, acabam por colocar os ex-cônjuges, e as vezes as demais pessoas da família, em uma diferente etapa do ciclo vital. No caso das pessoas que passam pela experiência da separação e divórcio, Carter e Macgoldrick destacam que “existem modificações cruciais no status relacional e importantes tarefas emocionais que precisam ser completadas pelos membros da família que se divorcia para que eles possam prosseguir desenvolvimentalmente. (…) Cada parceiro deve recuperar esperanças, sonhos, planos e expectativas que foram investidos nesse cônjuge e nesse casamento.” No filme, vemos a necessidade de Pat cumprir essa função com relação Nikki, para poder libertar-se e seguir adiante.



Carter e Macgoldick lembram que o período médio avaliado por elas em sua experiência clínica, e corroborado por outros pesquisadores, que uma pessoa ou família leva, com grande esforço, para reajustar-se à sua nova situação e prosseguir adiante para a próxima etapa do ciclo de vida (incluindo ou não uma experiência de recasamento) é de no mínimo 2 anos. E mais ou menos esse mesmo período de tempo elas consideram necessário na adaptação, e construção de uma nova estrutura no caso de recasamento. E alertam: “As famílias em que as questões emocionais do divórcio não estão adequadamente resolvidas podem permanecer emocionalmente paralisadas por anos, se não por gerações.”



No filme, Pat que lutou grandemente pela oportunidade de se reaproximar de Nikki, quando teve essa oportunidade, já estava tão profundamente envolvido pelo apoio, companheirismo e cumplicidade com Tiffany, que opta por investir na nova relação, abandonando as ilusões referentes ao primeiro relacionamento que já anteriormente não havia ido adiante. Neste momento, a trama da película chega ao fim. Os expectadores não sabem como essa história seguiria. Contudo, na vida real as terapeutas de família Carter e Macgoldrick, chamam a atenção para o processo emocional envolvido pelo par amoroso na etapa seguinte do ciclo de vida, que pode implicar no recasamento: “consiste em lutar com os medos relativos ao investimento em um novo casamento e numa nova família, os próprios medos da pessoa, os medos do novo cônjuge e os medos dos filhos (de um ou de ambos os cônjuges); lidar com as reações hostis ou de perturbação dos filhos, das famílias ampliadas e do ex-cônjuge, lutar com a ambiguidade da nova estrutura, papéis e relacionamentos familiares (…)” dentre outros fatores. Elas chamam a atenção para o desafio de inventar uma nova forma de estrutura familiar e aceitar a complexidade da nova forma.








 
Finalizando essa análise do filme, é importante destacar ainda a concretude com que o filme caracteriza o profundo sentimento de dor que pode marcar o rompimento de uma relação afetiva nas separações e divórcios, com implicações inclusive para as Famílias de Origem envolvidas, aspecto também muito bem ilustrado no filme. A dor pode ganhar contornos especiais, principalmente quando acompanhada por traição inesperada, como no caso de Pat. Dois marcos deixam isso bem pautados na trama: a dificuldade de lidar com as lembranças, e o comportamento agressivo daí decorrido.
O fato de Pat ficar absurdamente descontrolado e furioso quando escuta a música que marcou o seu relacionamento amoroso com Nikki e também a experiência de flagrante de traição, é um dos pontos fortes do filme. Chama a atenção o reviver das emoções negativas por ele, ao escutar a música tocar, com tal intensidade, sentindo-se ele absolutamente “tomado” pelas emoções, gerando algum sentimento que acaba sendo expressado em forma de grande agressividade. Neste momento é como se a emoção fosse maior do que ele, e se apoderasse de sua pessoa de tal forma que perde o controle. Embora em diferentes níveis, cabe aqui destacar que não é incomum, que nas situações de separação as memórias “fantasmáticas do passado” eventualmente tornem a visitar as pessoas, e por vezes as memórias e sensações chegam a apoderarem-se delas. Daí o grande auxílio que se pode obter de um processo psicoterapêutico que possa auxiliar a pessoa no enfrentamento dessas emoções, e na lida com suas memórias, com vistas à superação e não paralisação de seu desenvolvimento e vida.
 

Para Parkes, “a dor do luto é talvez o preço que pagamos pelo amor, o preço do compromisso. Ignorar esse fato ou fingir que não é bem assim, é cegar-se emocionalmente, de maneira a ficar despreparado para as perdas que irão inevitavelmente ocorrer em nossa vida, e também para ajudar os outros a enfrentar suas próprias perdas.” Tal ideia faz lembrar um trecho de um poema cuja autoria tem sido atribuida a Soren Kiekegaard que diz: “Expor seus sentimentos é arriscar-se a expor seu eu verdadeiro. Amar é arriscar-se a não ser amado. Mas... é preciso correr riscos. Porque o maior azar da vida é não arriscar nada... Pessoas que não arriscam, nada fazem, nada são. Podem estar evitando o sofrimento e a tristeza. Mas assim não podem aprender, sentir, crescer, mudar, amar, viver... (…) Arriscar-se é perder o pé por algum tempo. Não se arriscar é perder a vida... “

REFERÊNCIAS
CARTER, B. e MCGOLDRICK, M. As mudanças no ciclo de vida familiar. In: CARTER, B. e MCGOLDRICK, M. As mudanças no ciclo de vida familiar. Porto Alegre Artmed, 1995.
FÉRES-CARNEIRO, T. Separação: o doloroso processo de dissolução da conjugalidade. In: Estudos de Psicologia (Natal). v.8, n. 3. Natal: RN, set/dez.,2003
KIEKEEGAARD, S. Rir é arriscar-se.. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase/NTE5ODUw/
MANHART, K. Nada como um bom amigo. In: Viver Mente e Cérebro, n 159.
MENGHI, P. O casal útil. In: ANDOLFI, M. O casal em crise. São Paulo: Summus, 1995.
PARKES, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São paulo: Summus, 1998.
RATH, T. O poder da amizade. São Paulo: Sextante, 2006.
Fontes das imagens:

Referências do vídeo:

Flávia Diniz Roldão
Psicóloga, Pedagoga e Teóloga.
Psicoterapeuta individual, de casais e familias.

Trabalha com Arteterapia e desenvolvimento humano.
Contato: flaviaroldao@gmail.com