segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

MUDANÇAS, MORTES, ESCOLHAS, GANHOS E PERDAS


Reflexões a partir de um diálogo com ideias de Gilberto Safra
e os filmes 
O EXÓTICO HOTEL MARILGOLD” e "SETE VIDAS


Se existe uma certeza que podemos ter nessa vida, é a de que tudo muda. As coisas boas passam, infelizmente. As coisas ruins também, e isso é muito bom. Essa é a certeza que podemos ter nessa vida, como cantava Clara Nunes, a de que “amanhã há de ser outro dia”. Em linguagem filosófica diria Heráclito (540 a.C - 470 a.C.), “ninguém se banha duas vezes na mesma água”.


O filme “O Exótico Hotel Marigold” discute belissimamente essa realidade humana: tudo passa. E aborda a importância do ser humano saber reinventar outras possibilidades de si ao longo da existência. Ele discute o tema do envelhecimento, da morte e das perdas da vida. Também trata o tema da reinvenção da vida, da gratidão humana pelas coisas simples das quais se pode desfrutar ao longo de um dia, das escolhas, e os ganhos que podemos obter por caminhos as vezes até inesperados. Fala de histórias de vida, trazendo a história daqueles que tiveram o privilégio de envelhecer. Conta como sete pessoas bastante diferentes lidam de modo bastante peculiar com os temas anteriormente mencionados. São realidades diversas de construção da velhice. O autor expressa na tela aquilo que a vida demonstra todos os dias, e que os teóricos escrevem atualmente em suas obras: há diferentes formas de envelhecer, mesmo quando se está em um mesmo contexto de vida.




Quando abordamos o fundamento do modo de ser da vida e da existência humana - “as mudanças”- , conjuntamente precisamos destacar o que vem junto: “os ganhos e as perdas”. Pois toda mudança implica sempre inevitavelmente, em ganhos e perdas. Claro que se os ganhos advindos dela foram maiores dos que as perdas, dizemos na maioria das vezes que a mudança foi boa. Mas pode ocorrer noutras vezes de as perdas serem muito superior aos ganhos obtidos, e nestes casos, as mudanças costumam ser observadas como difíceis e até mesmo negativas.


Os serem humanos conhecem a impermanência da vida, mas não conseguem viver sem a ilusão de sua permanência. Por exemplo, todos morremos um pouco a cada novo dia. Porém, não nos damos conta disso, e quando por algum motivo, em um certo momento de lucidez nos assalta a consciência da morte e do processo de envelhecimento, as pessoas se abalam. A maioria de nós prefere viver na ilusão e no esquecimento destes fatos no embalo do cotidiano, ainda que saibamos que todos estamos condenados a essa trajetória existencial. 


Se há algo que iguala a todos os seres humanos, ricos ou pobres, intelectuais ou iletrados, com mais ou menos idade, é o fato de que enquanto vivemos todos estamos condenados ao envelhecimento contínuo e à morte certa. O que difere é a forma como cada qual lida e dá conta dessa certeza existencial.


Gilberto Safra, ao abordar em uma aula o tema “Maturidade e Morte”1, destaca a importância dos psicólogos clínicos compreenderem as diferentes formas da morte aparecer no horizonte da existência ao longo do ciclo vital, para poder ajudarem seus pacientes a lidarem com ela segundo a demanda do momento na psicoterapia. Para ele a morte aparece com destaque em alguns momentos do ciclo vital, os quais destacaremos aqui, ao menos 3 momentos principais. Como “Agonia Impensável” ao bebê ao qual falta o holding no início da vida. Como “Experiência Sociocultural", referindo-se à pessoa jovem/adulta que não consegue fazer uma inscrição ou entrada comunitária no campo sociocultural, não tendo uma participação efetiva de cooperação na comunidade e na vida social através de sua vocação, o que não lhe possibilita realizar-se socioculturalmente. E ainda, no final da vida, na velhice, quando a  morte aparece sobretudo no "registo existencial", claramente demarcada com a ideia de limite de tempo para a vida, e é vislumbrada no próprio projeto de vida da pessoa.

Sobre a primeira inscrição da morte na vida, não abordaremos aqui neste texto, visto que ela aborda a infância, fase que não é de interesse na presente reflexão. O leitor interessado deverá remeter-se ao trabalho de Safra1  para aprofundar o assunto.


Quanto ao segundo momento em que a morte costuma aparecer no ciclo vital, é já na etapa do jovem adulto, quando através de sua escolha vocacional, no exercício de uma atividade na vida, o jovem por algum motivo, não consegue entrada para servir à sua comunidade e à sociedade, e não consegue realizar-se enquanto pessoa. Nessa etapa, quando por algum fator ele é impedido ou sente-se impossibilitado de dar sua contribuição social efetiva, é como se ele morresse socialmente. Essa morte é vivida no campo sociocultural. Essa forma como os outros vêm a contribuição de um jovem ou adulto à comunidade ou sociedade através de uma vocação, é segundo Safra, importantíssima. Sendo que a não realização de si nesta dimensão é vivida efetivamente como uma morte. Uma morte não a partir da interioridade, mas sim do espaço sociocultural. E a não vivência desta experiência de contribuição social e cultural à comunidade, nesta etapa da vida, pode vir a atormentar ou pedir uma revisão posterior, na etapa seguinte, na terceira idade.


Nesta fase, segundo Safra, realiza-se uma “contabilidade existencial”, é uma etapa de ponderação (revisão), reorganização, e decisão. Uma fase na qual, segundo ele, se recolocam as questões da potência, da impotência e da onipotência. Onde o perdão é um tema absolutamente essencial, e o seu reverso, o ressentimento, pode aparecer voltado para o outro, para a vida, ou para si mesmo (um ressentimento ligado às questões que não foram resolvidas). Para ele, as pessoas têm um encontro marcado com as questões significativas às quais elas foram “empurrando com a barriga”, mas que nesta etapa da vida, não há mais tempo para isso.


Safra destaca o fato de que resolver qualquer ressentimento para consigo, com o outro e com a vida, ligado à sua história de vida e realização pessoal, é fundamental, pois, quando isso não ocorre, não há possibilidade da pessoa realizar-se por procuração, algo tão fundamental nesta etapa da vida, bem como, da pessoa efetivamente tornar-se avó ou avô. Antes pelo contrário, a pessoa ressentida adota uma postura de competição com as gerações mais novas, e não conseguem também outorgar às gerações mais jovens a possibilidade de realização. Outra forma de autorealização é ainda, a possibilidade de  realizarem-se em novos projetos, já que os antigos, não foram possíveis, e precisam ser revisados ou descartados.

Quando abordamos a possibilidade de realização por procuração é bom esclarecer do que se trata. Segundo Safra, as pessoas idosas têm a possibilidade de se realizarem através das gerações mais novas, buscando caminhos de vida que as possibilite auxiliar os mais jovens em sua autorealização. Assim os idosos realizam-se por identificação ou procuração. Isso acontece por exemplo, quando os idosos liberam os mais jovens para a sua autorealização, em questões nas quais eles mesmos não conseguiram libertar-se de amarras as quais os impediram de realizarem-se enquanto pessoa. Por exemplo, se a pessoa não conseguiu realizar-se afetivamente por amarras e tabus familiares que o prendiam, liberam as gerações mais novas destes tabus visando a sua realização. Ou ainda, a pessoa que não conseguiu estudar porque precisava trabalhar, e agora possibilita que seu neto que deseja estudar em tempo integral o faça, ajudando na realização de seu sonho que exige estudos em tempo integral. Mas para que essa possibilidade de realização por procuração ocorra, segundo Safra, é necessário que a pessoa realize uma aceitação de sua condição, e possa lidar com a questão do sentido da vida. Pois da mesma forma que para o bebê no início da vida o colo como holding é fundamental, para o idoso, isso é dado pelo sentido existencial.

O filme “O Exótico Hotel Marigold” aborda de modo bastante aprofundado e realista estes aspectos acima destacados, servindo como uma belíssima ilustração destes conceitos.



Segundo Safra, quando o idoso trabalha essa questão dos ressentimentos quanto aos desejos de realização passados, a aceitação de sua condição atual, a possibilidade de autorrealização por procuração, o trabalho de suas questões significativas de vida, dando atenção à questão crucial desta fase da vida que é: “O que me levaria a estar pronto para morrer?” Quando ela exercita o perdão e lida com sua “contabilidade existencial”, suas questões de potência, impotência e onipotência, ela tem a possibilidade de lidar e lida (muitas vezes), com a morte como término (o fim de um percurso), e não como interrupção.

Para ele a morte tem estas duas formas de aparição na vida: como interrupção, ou como o completar da vida. E isso independe da idade. Trata-se de uma questão de término de uma experiência, de um percurso. Essa ideia, também fica muito bem ilustrada no filme anteriormente citado, na morte do único idoso que morre na história, Graham.



Outro filme que aborda o tema da morte, mas agora a morte como interrupção, é o filme Sete vidas. Essa película aborda o tema do suicídio do personagem principal, Bem Thomas. Neste filme também é possível encontrar boas ilustrações para várias das ideias trabalhadas por Safra na obra referida, como por exemplo, a sua ideia de que “todas as pessoas anseiam morrer em companhia”. No filme, chama a atenção que mesmo neste caso de suicídio, representado por Bem Thomas, ele cerca-se de pessoas às quais decide doar seus órgãos após a morte.



Outra possibilidade de ilustração das ideias de Safra através do filme Sete Vidas, é a ideia de que é possível a convivência com a instabilidade sem que isso signifique impotência e sim, competência e manutenção da integridade existencial. Contudo, no filme a ilustração é possível através de um exemplo que mostra o aspecto negativo desta ideia, ou seja, como Bem Thomas, não conseguiu manter sua integridade existencial diante de um sentimento de culpa pelo qual fora tomado. Em sua palestra, Safra refere-se a essa ideia de preservação da integridade existencial, dando o exemplo de quando a experiência de instabilidade marca o corpo de alguém. Quem já trabalhou em reabilitação sabe - diz ele, da importância de ajudar a pessoa a perceber que a sua integridade como ser humano não foi atingida apesar de ter sido seu corpo atingido. Pois a pessoa- diz ele- pode fazer uma ruptura a partir daquela experiência corporal, e entrar num funcionamento melancólico. Justamente o que ocorreu com Bem Thomas, só que no filme, não foi devido a uma experiência de doença que marcou o seu corpo, mas a culpa, pela morte de sua esposa num acidente automobilístico no qual ele estava diretamente envolvido, que marcou a sua alma.

Pensar a morte, as perdas da vida, a culpa, as doenças que marcam o corpo e a alma, as escolhas que são realizadas na vida, e com isso as mudanças advindas com as consequentes perdas e ganhos,  não é uma empreitada simples, nem fácil, porém essencial aos profissionais que trabalham com gente, e que pensam a vida. Indico estes dois filmes e o DVD da palestra de Gilberto Safra para que possam ser assistidos e refletidos.



Flávia Diniz Roldão
Psicóloga, Pedagoga e Teóloga. Psicoterapeuta individual, de casais e familias. Trabalha com Arteterapia e desenvolvimento humano.
Contato: flaviaroldao@gmail.com



Referências:
Imagens disponíveis em: 
Trailers dos filmes:
https://www.youtube.com/watch?v=zXkJW7ar0AE
http://www.livrariaresposta.com.br/v2/produto.php?id=380