domingo, 20 de janeiro de 2013

Filme: A VIDA DURANTE A GUERRA

 
A vida durante a guerra (Life during wartime), Todd Solondz, EUA, Imagem Films, 2009.
 
Dias atrás quando fui fazer compras no supermercado, vi uma banca com filmes em promoção. A soma de férias, mais uma pessoa que ama assistir filmes e filme em promoção é = uma combinação perfeita. Comprei um filme a um preço bem menor que uma entrada para o cinema. Restava agora ver se o filme valia a pena pelo tempo dispendido na sua apreciação.
 
A vida durante a guerra é um filme sobre FAMÍLIA. Poderíamos fazer um trocadilho com o seu título, e chamá-lo "A guerra durante a vida" - lhe cairia muito bem. Impactante pela crueza no tratamento do tema. Mostra especialmente 2 mulheres (irmãs, lidando com suas famílias e tentando dar conta de suas relações afetivas), 2 homens absolutamente diferentes lidando com este tema da família (o ex-marido/pai e o futuro marido/padrasto), o impacto da realidade familiar sobre os filhos (1 garotinha, 1 garotinho e 2 rapazes, - 3 deles lidando com o fato de seu pai ser um pedófilo).
A indicação do filme é para maiores de 16 anos, e realmente faz bem ser seguida, visto que a película aborda o tema da família de forma absolutamente densa, devido aos desafios existenciais encenados. Toca no fato de pessoas em diferentes fases do seu ciclo vital e de diferentes gêneros, terem que dar conta de VIVER a vida mesmo quando a alma está em guerra, seja pelo assombro de ter que viver com uma doença (pedofilia, esquizofrenia...), ou de ter que conviver com ela na vida de pessoas da sua família, ou ainda ter que dar conta das relações amorosas estabelecidas e as respostas que necessita dar às indagações que lhes são feitas.

 
Por outro lado, aborda de maneira singela e profunda os medos que as vezes passam a habitar a vida dos pequenos e dos adultos, devido as experiências “traumáticas” vividas. E aqui faz lembrar que há na vida problemas que assolam as pessoas, não sendo uma escolha ter que lidar existencialmente com certos temas, e sim um fato existencial ao qual é preciso dar uma resposta enquanto continua a vida. Enquanto se está vivo.
 
Os diálogos de Timmy, o garoto que descobre que seu pai não está morto, como a mãe lhe havia dito, mas é um pedófilo, e antes do ritual do bar mitzvah i , indaga-se: O que é se tornar um homem ? Pedófilos são terroristas ? Os terroristas podem ser perdoados ? E indaga o futuro padrasto acerca de como ele lidaria com isso, enquanto projeta seus medos antigos na nova relação estabelecida com ele.
 
 
Outro ponto de discussão do filme: a reconstrução da vida conjugal numa segunda experiência de casal pós-divórcio e famílias reconstituidas. Aborda os encontros e o estabelecimento de laços de afetos entre dois adultos após suas experiências de divórcio (tocando nas entrelinhas, nas desolações, nos medos e nos desafios naturalmente colocados aos que passam por essa experiência, e o impacto desta na continuação da vida deles).


Aborda o tema também a partir do olhar dos filhos, quando as duas famílias com suas características e histórias peculiares, buscam se aproximar na constituição de um novo grupo famíliar, como uma preparação de ambas, para a união de Trish e Harvey. Momento de advento na vida do casal, na vida dos filhos, e na vida de ambas as famílias monoparentais.

Na conversa densa entre Timmy (o futuro entiado) e Harvey (o futuro padrasto), o filme explicita um ponto que tem merecido a atenção entre os terapeutas familiares nos casos do recasamento: não se trata de uma experiência simples ou fácil, e precisa ser conduzida com calma e serenidade. No processo, feridas do passado podem vir à tona na mente e emoção de todos os envolvidos (adultos e crianças), e podem ocorrer mal entendidos, se o passado não for cuidadosa e habilidosamente resignificado. Inclusive impedindo novas possibilidades mais felizes de vida de se concretizarem, com base em impressões advindas da falta de revisão de dores antigas que ainda se presentificam na vida dos envolvidos. Faz pensar que nestes casos, somente adultos verdadeiramente ADULTOS – maduros – conseguem dar conta de levar em frente eficazmente este processo do restabelecimento de novas oportunidades funcionais e saudáveis, de uma nova vida em família, através da reconstrução da conjugalidade e o restabelecimento da vida em famílias recasadas.

 
O garoto Timmy, detém boa parte dos diálogos densos no filme. Noutro momento, quando busca empatia e acolhimento em diálogo com seu “futuro irmão”, o filho de Harvey, novamente o menino abre a reflexão com o público sobre a complexidade no estabelecimento das relações entre os filhos de ambos os cônjuges, a circulação que ocorre quanto aos problemas anteriormente vividos por ambas as famílias, as formas diferentes de dialogar ou não e demonstrar afeto presentes em cada cultura familiar, bem como, de acessar ou não mais profundamente os problemas existenciais que os afetam.
 
Somando a isso, a trama ainda abre espaço para a volta de Bill, o pai que sofre a pedofilia, em busca de encontrar o filho mais velho para tentar saber o quanto ele foi afetado por experiências passadas. Delicado momento este encontro, e chama a atenção quando a funcionalidade e sanidade do filho é quase uma surpresa espantosa e de difícil compreensão para o pai, embora certamente um momento de alívio e felicidade. Aqui cabe destacar a lembrança da terapeuta familiar Fromma Walsh, de que estudos empreendidos com indivíduos resilientes nas duas últimas décadas “se contrapuseram à visão predominante de que os fatores de risco familiares e ambientais e os eventos negativos da vida produzem, inevitavelmente, transtornos na infância e na idade adulta.”
 
 
Na trama há ainda a história de Joy (a irmã de Trish), onde temas como culpa, saúde mental e o suicídio, são destacados.
 
O filme é indicado a todas as pessoas adultas. Especialmente as que trabalham com relações de ajuda e família. Mas vale a pena ver o filme em um dia em que você esteja bem, pois quando o filme termina, as reflexões continuam.
Pessoalmente acho que um outro título possível para a obra seria: “A vida depois da morte” - chamando a atenção para a luta dos personagens pela reconstrução e manutenção da vida, quando determinadas coisas (ideias, valores, sonhos, concepções, antigos relacionamentos) morrem dentro de si enquanto eles ainda estão VIVOS, e ainda respiram o sopro de vida. Neste sentido, o filme pode ser uma fonte útil para o início de uma discussão do tema da resiliência familiar. Lembrando que resiliência familiar é um conceito que aborda a capacidade da família “resistir aos desafios desorganizadores da vida e renascer a partir deles” (WALSH). Lembrando que a lente da resiliência familiar muda a perspectiva de se encaixar as famílias em situações de angústia como defeituosas, para encará-las como desafiadas, ratificando seu potencial para o reparo e o crescimento. (…) Em vez de nos concentrarmos em como as famílias fracassaram, podemos dirigir nossa atenção para como elas podem ter sucesso. (…) Ao construir a resiliência, nós nos esforçamos para integrar a plenitude da experiência de uma crise no tecido da nossa identidade individual e coletiva, o que vai influenciar a maneira como vamos seguir vivendo nossas vidas.” (WALSH).
Todo momento de crise é um momento de perigo e oportunidades, simultaneamente. São momentos em que as pessoas são chamadas a refletirem profundamente sobre suas questões existenciais, não necessariamente por que desejam, mas porque precisam, para seguir em frente, bem, funcionais e saudáveis.
Tal como as crises pedem reflexão, o filme coloca os expectadores em processo reflexivo. Como psicóloga, teóloga e educadora, acho que valeu a pena o tempo dispendido em assistir o filme, ele é denso, porém os diálogos são bastante educativos, seja pela assertividade demonstrada pelos personagens em suas colocações, ou pela não assertividade presente em outras cenas. Ele abre a possibilidade de servir como recurso na formação de psicólogos, educadores e outros profissionais ao tratar de diversas temáticas pertinentes aos seres humanos, sua vida e suas famílias.
 
 
i O Bar-Mitzvá, é um ritual de passagem judaico. O judaísmo considera o jovem de 13 anos maduro o suficiente para ser responsável por seus atos. Para maiores detalhes sobre o que é bar mitzvah ver: http://www.morasha.com.br/conteudo/artigos/artigos_view.asp?a=605&p=0


 
Referências:
WALSH, Fromma. Fortalecendo a resiliência familiar, São Paulo: Roca, 2005.
 
Fontes das imagens: