A vida
durante a guerra (Life during wartime), Todd Solondz, EUA, Imagem
Films, 2009.
Dias
atrás quando fui fazer compras no supermercado, vi uma banca com
filmes em promoção. A soma de férias, mais uma pessoa que ama
assistir filmes e filme em promoção é = uma combinação perfeita.
Comprei um filme a um preço bem menor que uma entrada para o cinema.
Restava agora ver se o filme valia a pena pelo tempo dispendido na
sua apreciação.

A vida
durante a guerra é um filme sobre
FAMÍLIA. Poderíamos fazer um trocadilho com o seu título, e chamá-lo
"A guerra durante a vida" - lhe cairia muito bem. Impactante pela crueza
no tratamento do tema. Mostra especialmente 2 mulheres (irmãs,
lidando com suas famílias e tentando dar conta de suas relações
afetivas), 2 homens absolutamente diferentes lidando com este tema da
família (o ex-marido/pai e o futuro marido/padrasto), o impacto da
realidade familiar sobre os filhos (1 garotinha, 1 garotinho e 2
rapazes, - 3 deles lidando com o fato de seu pai ser um pedófilo).
A
indicação do filme é para maiores de 16 anos, e realmente faz bem
ser seguida, visto que a película aborda o tema da família de forma
absolutamente densa, devido aos desafios existenciais encenados.
Toca no fato de pessoas em diferentes fases do seu ciclo vital e de
diferentes gêneros, terem que dar conta de VIVER a vida mesmo quando
a alma está em guerra, seja pelo assombro de ter que viver com uma
doença (pedofilia, esquizofrenia...), ou de ter que conviver com ela
na vida de pessoas da sua família, ou ainda ter que dar conta das
relações amorosas estabelecidas e as respostas que necessita dar às
indagações que lhes são feitas.

Por outro
lado, aborda de maneira singela e profunda os medos que as vezes
passam a habitar a vida dos pequenos e dos adultos, devido as
experiências “traumáticas” vividas. E aqui faz lembrar que há
na vida problemas que assolam as pessoas, não sendo uma escolha ter
que lidar existencialmente com certos temas, e sim um fato
existencial ao qual é preciso dar uma resposta enquanto continua a
vida. Enquanto se está vivo.
Os
diálogos de Timmy, o garoto que descobre que seu pai não está
morto, como a mãe lhe havia dito, mas é um pedófilo, e antes do
ritual do bar mitzvah
i ,
indaga-se: O que é se tornar um homem ? Pedófilos são terroristas
? Os terroristas podem ser perdoados ? E indaga o futuro padrasto
acerca de como ele lidaria com isso, enquanto projeta seus medos
antigos na nova relação estabelecida com ele.
Outro
ponto de discussão do filme: a reconstrução da vida conjugal numa
segunda experiência de casal pós-divórcio e famílias
reconstituidas. Aborda os encontros e o estabelecimento de laços de
afetos entre dois adultos após suas experiências de divórcio
(tocando nas entrelinhas, nas desolações, nos medos e nos desafios
naturalmente colocados aos que passam por essa experiência, e o
impacto desta na continuação da vida deles).

Aborda o tema também
a partir do olhar dos filhos, quando as duas famílias com suas
características e histórias peculiares, buscam se aproximar na
constituição de um novo grupo famíliar, como uma preparação de
ambas, para a união de Trish e Harvey. Momento de advento na vida do
casal, na vida dos filhos, e na vida de ambas as famílias
monoparentais.
Na
conversa densa entre Timmy (o futuro entiado) e Harvey (o futuro padrasto), o filme explicita um ponto que
tem merecido a atenção entre os terapeutas familiares nos casos do
recasamento: não se trata de uma experiência simples ou fácil, e
precisa ser conduzida com calma e serenidade. No processo, feridas do
passado podem vir à tona na mente e emoção de todos os envolvidos
(adultos e crianças), e podem ocorrer mal entendidos, se o passado
não for cuidadosa e habilidosamente resignificado. Inclusive
impedindo novas possibilidades mais felizes de vida de se
concretizarem, com base em impressões advindas da falta de revisão
de dores antigas que ainda se presentificam na vida dos envolvidos.
Faz pensar que nestes casos, somente adultos verdadeiramente ADULTOS
– maduros – conseguem dar conta de levar em frente eficazmente
este processo do restabelecimento de novas oportunidades funcionais e
saudáveis, de uma nova vida em família, através da reconstrução
da conjugalidade e o restabelecimento da vida em famílias recasadas.

O garoto
Timmy, detém boa parte dos diálogos densos no filme. Noutro
momento, quando busca empatia e acolhimento em diálogo com seu
“futuro irmão”, o filho de Harvey, novamente o menino abre a
reflexão com o público sobre a complexidade no estabelecimento das
relações entre os filhos de ambos os cônjuges, a circulação que
ocorre quanto aos problemas anteriormente vividos por ambas as famílias, as
formas diferentes de dialogar ou não e demonstrar afeto presentes em
cada cultura familiar, bem como, de acessar ou não mais
profundamente os problemas existenciais que os afetam.
Somando a
isso, a trama ainda abre espaço para a volta de Bill, o pai que
sofre a pedofilia, em busca de encontrar o filho mais velho para
tentar saber o quanto ele foi afetado por experiências passadas.
Delicado momento este encontro, e chama a atenção quando a
funcionalidade e sanidade do filho é quase uma surpresa espantosa e
de difícil compreensão para o pai, embora certamente um momento de
alívio e felicidade. Aqui cabe destacar a lembrança da terapeuta
familiar Fromma Walsh, de que estudos empreendidos com indivíduos
resilientes nas duas últimas décadas “se contrapuseram à visão
predominante de que os fatores de risco familiares e ambientais e os
eventos negativos da vida produzem, inevitavelmente, transtornos na
infância e na idade adulta.”
Na trama há ainda
a história de Joy (a irmã de Trish), onde temas como culpa, saúde mental e o suicídio,
são destacados.
O filme é
indicado a todas as pessoas adultas. Especialmente as que trabalham
com relações de ajuda e família. Mas vale a pena ver o filme em um
dia em que você esteja bem, pois quando o filme termina, as
reflexões continuam.
Pessoalmente
acho que um outro título possível para a obra seria: “A vida
depois da morte” - chamando a atenção para a luta dos personagens
pela reconstrução e manutenção da vida, quando determinadas
coisas (ideias, valores, sonhos, concepções, antigos
relacionamentos) morrem dentro de si enquanto eles ainda estão VIVOS,
e ainda respiram o sopro de vida. Neste sentido, o filme pode
ser uma fonte útil para o início de uma discussão do tema da
resiliência familiar. Lembrando que resiliência familiar é um
conceito que aborda a capacidade da família “resistir aos desafios
desorganizadores da vida e renascer a partir deles” (WALSH).
Lembrando que a lente da resiliência familiar muda a perspectiva de
se encaixar as famílias em situações de angústia como
defeituosas, para encará-las como desafiadas, ratificando seu
potencial para o reparo e o crescimento. (…) Em vez de nos
concentrarmos em como as famílias fracassaram, podemos dirigir nossa
atenção para como elas podem ter sucesso. (…) Ao construir a
resiliência, nós nos esforçamos para integrar a plenitude da
experiência de uma crise no tecido da nossa identidade individual e
coletiva, o que vai influenciar a maneira como vamos seguir vivendo
nossas vidas.” (WALSH).
Todo
momento de crise é um momento de perigo e oportunidades,
simultaneamente. São momentos em que as pessoas são chamadas a
refletirem profundamente sobre suas questões existenciais, não
necessariamente por que desejam, mas porque precisam, para seguir em
frente, bem, funcionais e saudáveis.
Tal como
as crises pedem reflexão, o filme coloca os expectadores em processo
reflexivo. Como psicóloga, teóloga e educadora, acho que valeu a
pena o tempo dispendido em assistir o filme, ele é denso, porém os
diálogos são bastante educativos, seja pela assertividade
demonstrada pelos personagens em suas colocações, ou pela não
assertividade presente em outras cenas. Ele abre a possibilidade de
servir como recurso na formação de psicólogos, educadores e outros
profissionais ao tratar de diversas temáticas pertinentes aos seres
humanos, sua vida e suas famílias.
Referências:
WALSH, Fromma. Fortalecendo a resiliência familiar, São Paulo: Roca, 2005.
Fontes das imagens: