sábado, 27 de abril de 2013

SOBRE SEGREDOS, VERGONHA E LONGE-V-IDADE

Existe um tema que tem sido pouco destacado na literatura científica em língua portuguesa no campo da psicoterapia de família, casais e sistemas: a vergonha. O fato deste tema não ter merecido ainda entre a maioria dos estudiosos e clínicos, um grande destaque, não significa que ele se manifeste pouco na vida das pessoas ou apareça pouco na clínica e demais relações de ajuda, mas sim, que ele tem sido pouco trabalhado enquanto categoria central nas reflexões e estudos dos psicoterapeutas e outros profissionais.



Dias atrás, trabalhando na clínica com pessoas em sofrimento psíquico devido a este problema, fui buscar referencial teórico que me ajudasse a compreendê-lo melhor, e me deparei com a obra do neuropsiquiatra Boris Cyrulink: "Dizer é morrer: a vergonha".


O livro aborda este tema desconcertante, de maneira profundamente empática e inquietante  em suas primeiras páginas.  Resolvi compartilhar com você, leitor deste blog, um trecho das duas primeiras páginas, pois ao ler este trecho, percebi-o como altamente sensibilizador para a importãncia e o cuidado que esta temática deve merecer por parte dos profissionais da área de ajuda. A pessoa que em seu íntimo já sofre tendo que lidar com a vergonha, não necessita ter iatrogenicamente que lidar também com a culpa como sintoma secundário instalado em si, pela forma às vezes pouco empática, com a qual um profissional pode abordá-la, na tentativa de ofercer ajuda. Fato este que não é difícil de ocorrer, se o profissional não estiver atento ao seu papel de acolhimento da queixa sem realizar um julgamento de valor, mas abordar o outro que sofre partir de uma postura empática.

Há uma metáfora que aprecio bastante para pensarmos o que é empatia: empatia é calçar os sapatos do outro para poder saber onde lhe dói ou aperta os pés. É o ato de solidarizar-se com o outro e perguntar-se ao calçar os seus sapatos: Porque ele não consegue caminhar? Qual o tamanho dos seus pés ? Porque o sapato lhe aperta? Onde o sapato foi laceado e agora não mais acomoda-se perfeitamente aos pés?



Feldman e Miranda em seu livro "Construindo a relação de ajuda", citam Paul Tournier que entende ser bela, intensa e libertadora a experiência de se aprender a ajudar o outro. E escreve: "Ninguém pode se desenvolver livremente nesse mundo, nem encontrar uma vida plena, sem sentir-se compreendido por uma pessoa pelo menos..."

Em publicação anterior no artigo "Pistas para a construção de uma pastoral do cuidado junto a pacientes fora de possibilidades terapêuticas e seus familiares", já mencionamos a idéia de Cecily Saunders por nós corroborada, de que " o sofrimento humano somente é intolerável quando ninguém cuida." ( Souza e Roldão). Mas para poder cuidar e oferecer ajuda efetiva mediante o sofrimento do outro é preciso sensibilidade, tato e empatia.

O psicólogo norte americano Carl Rogers realizou na década de 60 do século passado, um dos estudos mais importantes na área da psicoterapia. Ele investigou em diferentes abordagens teóricas, dentre outras questões, o que gerava resultados positivos no processo psicoterápico, e encontrou em sua pesquisa o surpreendente fato de que, os efeitos positivos em psicoterapia "não estavam ligados à abordagem teórica ou às técnicas usadas pelos terapeutas." Ou seja, "o crescimento do cliente não é função da abordagem teórica ou das técnicas usadas pelo terapeuta." O que a pesquisa demonstrou foi que, algumas características individuais do terapeuta no seu relacionamento com o cliente, suas posturas ou atitudes terapeuticas, têm impacto positivo no processo psicoterápico, independente da denominação teórica que o terapeuta usa. Tais características que influenciam positivamente o processo de ajuda são: empatia, aceitação incondicional e coerência.


Refleti então, sobre a importãncia do acolhimento empático da queixa. As vezes, as pessoas entram em situação de sofrimento psiquico devido ao fato de sofrerem caladas algumas de suas dificuldades e problemas enfrentados na vida, por vergonha de se exporem à outra pessoa com medo de sofrerem acusações, desqualificação, discriminação e não aceitação de quem elas são. Ninguém deseja passar por isso. As pessoas, se puderem, afastam-se do que lhes faz sofrer. E para além de seus problemas e dificuldades já enfrentados, quando a pessoa busca uma relação de ajuda e ainda vem a sofrer iatrogenicamente destes problemas que ela anteriormente não tinha, aumenta-se o seu sofrimento ainda mais, e a partir de então, a pessoa passa a ter ainda mais um outro problema para lidar além daquele pelo qual incialmente ela pos-se a buscar ajuda. Por isso, empatia é absolutamente fundamental quando um cuidador está lidando com a busca de ajuda numa situação que envolve o sentimento de vergonha (e que por vezes gera o segredo, que também pode ser fonte de sofrimento psíquico).
Mas além da vergonha, que pode gerar o segredo, ou em outros casos, do segredo, que pode gerar a vergonha, outro fator também pode estar ligado à vergonha: as escolhas mal realizadas que geraram atitudes das quais as pessoas se envergonham. Porém, é difícil que alguém passe pela vida sem nunca ter passado por esse tipo de experiência, e sendo assim, esse é um fato muito comum entre os seres humanos. O problema, é que as vezes não acolhemos, e/ou nos esquecemos daquele nosso lado que não é tão bom, tão agradável a nós, e quando a situação ocorre com o outro, também não acolhemos as suas falhas com a devida empatia e solidariedade.



O tema das escolhas realizadas na vida é outro tema bastante complexo, especialmente nos dias atuais. Para mencionar apenas um motivo implicado neste processo de complexidade, destaco aqui o fato da longevidade que os humanos tem alcançado nos últimos anos. Temos vivido 70, 80 e as vezes até 90 anos, mas muitas das escolhas que são absolutamente centrais e fundamentais na vida foram feitas na adolescência aos 16, 18, 21 anos. Contudo temos que dar conta de administrar e conviver com tais escolhas não apenas por mais 20  ou 30 anos até morrermos, como acontecia no passado quando as pessoas morriam mais cedo por volta dos 45, 50 ou 60 anos, mas conviver e administrar o impactos destas escolhas por mais 30, 40, 60 anos ou mais. E as vezes a vergonha é fruto do impacto destas escolhas precoces do tempo da imaturidade, e portanto nem haveria muita razão de ser. Mas as vezes não se trata de uma questão de razão, ocorre que por fatores diversos aí implicados, ela instala-se e atrapalha a vida das pessoas. Daí a importãncia destas irem buscar ajuda para trabalharem esta questão na sua vida. Mas os profissionais da área da ajuda precisam estar adequadamente preparados e teoricamente instrumentalizados para lidar com esse tema. Grande desafio tem os seres humanos ao terem que administrar o impacto da longevidade em sua vida. Um campo vasto para pensarmos na importância da qualidade de vida e da saúde mental. Grande desafio possuem os profissionais da área de ajuda ao se prepararem humanamente e tecnicamente para abordarem essa temática nas relações de ajuda.



Vamos então ao trecho do livro de Cyrulink. Espero que a leitura do mesmo sirva-nos como instrumento de sensibilização, para com a delicadeza que merece o tratamento do tema da vergonha na psicoterapia, e em outras formas de relação de ajuda às pessoas:

"Se querem saber porque eu não disse nada, basta tentarem descobrir o que me forçou a calar. As circunstâncias do acontecimento e as reações do meio são coautoras do meu silêncio. Se eu lhes contar o que aconteceu comigo, vocês não vão acreditar, vão dar risada, tomar o partido do agressor, (...) ou pior ainda, ter dó de mim. Seja qual for sua reação, bastará eu contar para me sentir mal sob seu olhar.

Portanto, vou me calar para me proteger, vou pôr na fachada apenas a parte da minha história que vocês são capazes de suportar. A outra parte, a tenebrosa, viverá sem uma palavra nos subterrâneos da minha personalidade. Essa história sem palavras governará nossa relação porque, em meu foro íntimo, contei interminavelmente palavras não compartilhadas, relatos silenciosos.

As palavras são pedaços de afeto que as vezes transportam um pouco de informação. Uma estratégia de defesa contra o indizível, o impossível de dizer, o penoso de ouvir acaba de estabelecer entre nós uma estranha passarela afetiva, uma fachada de palavras que permite deixar na sombra um episódio inverossimil, uma catástrofe na história que eu me conto sem cessar, sem dizer uma palavra.

O não compartilhamento das emoções instala na alma do ferido uma zona silenciosa que fala sem parar, uma espécie de baixo falante em certo sentido, que murmura no fundo de si um relato inconfessável. É difícil calar, mas é possível não dizer. Quando a pessoa não se exprime, a emoção se manifesta de forma ainda mais intensa sem palavras. Enquanto está sofrendo, um ferido não fala, ele cerra os dentes e só. Quando o não dito hiperconsciente não é compartilhado, ele estrutura uma presença estranha. ' Embora a conversa desse homem seja fluente, sinto que ele fala para esconder o que não diz.' O recalcamento organiza interações diferentes. Inicialmente ele é inconsciente. Com os sonhos, contudo, surgem cenografias estranhas que deixam escapar enígmas que pedem para ser decifrados.

O envergonhado aspira falar, gostaria muito de dizer que é prisioneiro de uma língua muda, do relato que ele conta para si em seu mundo interno, mas que não pode lhes dizer de tanto que teme o olhar dos outros. Acredita que vai morrer se falar. Então conta a história de outra pessoa que, como ele, sofreu um baque terrível.

Ele escreve uma autobiografia em terceira pessoa e se espanta com o alivio que lhe proporcionou o relato de outra pessoa igual a ele, um representante de si, um porta voz. O fato de ter dado uma forma verbal ao baque sofrido e tê-lo compartilhado apesar de tudo, permitiu-lhe abandonar a imagem do mosntro que acreditava ser. Voltou a ser como todo mundo, porque você o entendeu (...)."



REFERÊNCIAS:

CYRULINK, Boris. Dizer é morrer: a vergonha. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

FELDMAN, Clara e MIRANDA, Márcio L. Construindo a relação de ajuda. 14 ed. Belo Horizonte: Ed Crescer, 2004.

SOUZA, Roberta C. e ROLDÃO, Flávia D. Pistas para a construção de uma pastoral do cuidado junto a pacientes fora de possibilidades terapêuticas e seus familiares. In: Revista Via Teológica, n. 16 vol 1. junho de 2008.

REFERÊNCIA DAS IMAGENS:
Facebook : Link para : Painting the world
                                     Dreamstime
Blogs: http://colheitade69.blogspot.com.br/2010/04/empatia.html 
            http://www.gabiamou.com/2009/11/suri-cruise-e-seus-sapatinhos-de-salto.html 

 
Flávia Diniz Roldão
Psicóloga, Pedagoga e Teóloga.
Psicoterapeuta individual, de casais e familias.
Trabalha com Arteterapia e desenvolvimento humano.

Contato: flaviaroldao@gmail.com